Café

João Vitor acordou mais um dia, por muitas vezes não era isso que ele gostaria que acontecesse, mas naquele dia acordou para fazer um café preto e bem forte, seu cachorro ficava ao seu lado esperando um carinho que sempre chegava entre as orelhas e o pescoço.

O bico de pressão da cafeteira italiana, na boca quente do fogão, começava a assobiar e o cheiro saia pelo topo, chegando até as narinas de João que olhava respectivamente para a cafeteira e então para seu cachorro.

O café estava ficando quase pronto, o rapaz se levantou e colocou um pouco de ração para seu amigo se distrair um pouco enquanto ele terminava de arrumar a mesa na sala. Os cachorros do vizinho começavam a latir, talvez estivessem esperando por seus cafés da manhã que estavam atrasados naquele dia.

O barulho do café que subia pelo bico da cafeteira finalmente parou; João a pegou, enfim, pelo cabo e trouxe até à mesa aquele receptáculo de esperanças.

Após se servir em uma xícara que usava – ritualmente – toda manhã, começou a encarar a bebida e deixou o aroma fervente queimar de leve as suas narinas enquanto via ao fundo o reflexo negro de alguma coisa que ele ainda não entendia.

Seu cachorro terminara de comer toda a ração e, com o rabo balançando de alegria, sentou ao lado de João esperando mais um carinho.

Descaso com outro ladrilho na parede

Anote isso: O ladrilho de cima do banheiro que você fica encarando está sujo e oco, você precisa dar um jeito nisso.

Você esqueceu de novo, né?A quanto tempo isso acontece com você? Você tem que parar de julgar a si mesmo por não lembrar de coisas importantes, mas… Às vezes você esquece até do seu corpo e da sua cabeça, não é?

A quanto tempo você deixou isso tudo de lado?

O que foi que aconteceu naquele dia?

Você conseguiu gargalhar honestamente sem sentir qualquer graça das coisas; talvez você esteja ficando louco, afinal de contas, já pensou nisso?

Como você consegue olhar as pessoas do trabalho em um dia horrível? Como você consegue se olhar no espelho antes de ir para o trabalho?

Passando seu dedo – sem parar – pela linha do tempo de uma rede social qualquer, quanto tempo você perdeu? O quanto você perdeu a linha?

Você dorme 3 horas por noite e acorda exausto. Você dorme 8 horas por noite, acorda exausto e atrasado. Você dorme 10 horas e não queria mais acordar.

Toma cuidado com esse ladrilho, é capaz dele cair na sua cabeça.

Você ainda está ANOTANDO isso?!

Espera… Não era essa palavra, era? Talvez sem o “a”.

Agora sim.

A Sombra é meu Espelho

Durante um ataque de ansiedade, que eu não sabia exatamente de onde tinha vindo; arrumei meu corpo na posição que aprendi para realizar um pequeno exercício de meditação.

A alguns anos uso da meditação para me sentir melhor, sem envolver qualquer relação com espiritualidade e muito menos religiosidade, realizo esse exercício com um único intuito: PARAR.

Já era noite, e ali estava eu: tronco ereto, luz do quarto desligada, rosto sem expressão, ventilador levemente ligado, corpo relaxado.

Não sou do tipo que usa de um mantra para a concentração, gosto de ouvir minha respiração enquanto estou de olhos fechados e tento me focar em não me focar em nada.

Naquela noite, em especial, o exercício estava extremamente difícil, não conseguia finalizar o ciclo da respiração mais do que 5 vezes que tudo vinha explodindo, novamente, à minha cabeça.

Mas, então, acabo abrindo os olhos e noto que não tinha tirado a televisão da tomada e uma luz de seu display formava na parede uma sombra suave de meu corpo. Encarando minha sombra iniciei um exercício diferente:

A sombra é meu espelho

Apenas uma imagem

Distorcida

Cravada

Em uma parede

Seu contorno

É possível seu contorno

Ser mais escuro do que seu interior?

Encaro a sombra

Pois a sombra é meu espelho

Encaro então minha imagem

Sim

Apenas minha imagem

Me concentro e

De alguma forma

O contorno da sombra some

Bem onde estava minha cabeça

Vejo luz

Brotando da sombra

Isso é possível?

Me pergunto

Não deveria

O contorno escuro

Volta

Faço um esforço

Novamente

A sombra

Que é meu espelho

Luta comigo

Respira

Luz

Concentra

Pergunta

Contorno

A sombra

Não é meu espelho

Eu sou a sombra

Quando a Morte lhe Acerta Mais Uma Vez

Estava em outra madrugada qualquer, mexendo no computador, quando senti uma tremenda fisgada no canto da barriga que fez levar a mão até onde doía.

“Caralho!”

Era na região no apêndice e lembrei que já tinha desmaiado no hospital e tomado soro por duas horas num “susto” de apendicite. Eu também me lembrei de como o médico empurrava a sua mão na minha barriga no canto direito perguntando se eu tinha dor, disse que era uma espécie de teste para saber se tem algum problema.

No último susto não doía a região exata do apêndice, eram outros problemas, mas fiz questão de lembrar a posição e a força que ele usou no teste para que eu pudesse fazer sozinho quando suspeitasse.

Nesta outra noite doeu, e como doeu. Deitei na cama, me contorcia de dor, a cabeça chegava ir para frente e mordia os beiços.

Junto à dor eu me desesperava, lembrava da primeira vez que tinha ouvido falar sobre apendicite, foi um amigo meu que contou a história:

“É perigo puro, djou, pode ser a qualquer hora e às vezes você nem nota; meu tio teve apendicite, enquanto estava dormindo, ai deu hemorragia interna e ele morreu, sem saber. Meu pai teve também, só que ele conseguiu notar e foi para o hospital fazer a cirurgia. É foda, você pode morrer e nem perceber. Temos que estar sempre atentos.”

Este amigo meu morreu dois anos depois, num acidente de moto ridículo.

Mas lembrei, mais uma vez, de como deve ser morrer. Pode ser a entrada para um outro plano, o lance da luz e blá blá blá, eu esperava isso naquela hora, mas podia ser pior. Podia ser o Nada. Simplesmente nada.

E ai talvez seja um dos problemas de morrer, o medo de morrer em geral não está na morte em si, “o processo”, mas no temor egoísta do fim de sua existência, “a consequência”.

 “Eu posso não estar mais aqui?!”, é isso que pensamos. Às vezes pensamos naqueles em quem vamos deixar saudades, mas é o medo de não existirmos que está no pensamento “EU NÃO QUERO MORRER!”.

E lá estava eu sendo egoísta também, comecei a pensar no que eu tinha que terminar, minhas provas da faculdade (!), tenho que ir trabalhar (!), queria acordar amanhã cedo (!)

A dor diminuiu e aquele trecho do Dylan me surgiu na cabeça, “That he not busy being born Is busy dying” (Que aquele que não está ocupado nascendo está ocupado morrendo).

A consequência é certa e inexata, mas eu estou no processo porra e não vou levar numa boa. Peguei um livro de literatura com sacanagem “à lá” Henry Chinasky que gostaria de recomendar a qualquer um que estiver lendo estas palavras, pois eu sei que todas as pessoas gostam destas coisas; refiro-me à literatura.

Fui ao banheiro, sentei no vaso, encostei a nuca na parede e com o braço direito ergui o livro aberto na altura dos olhos.

E comecei a ler aquela sacanagem; refiro-me à vida.

Introspecção na Calçada de Tijolos Brancos

Aqueles dois estavam conversando enquanto caminhavam para algum lugar, dentro de silêncio que se mostrava um tanto quanto incômodo antes de quebrado.

“E ai, como segue sua vida?”, perguntou um deles.

O outro ergueu a cabeça e olhou para o seu companheiro de caminhada:

“Acho que a vida está me dando os mesmos problemas que já tive como prova a ser cumprida. Ela parece querer saber se, de fato, eu amadureci, ou se cometerei os mesmos erros de antes. Tomando as mesmas atitudes ou não tomando atitude alguma.”

O primeiro caminhante, aquele que fez a pergunta, se assustou, esperava uma resposta automática como um “a vida vai indo” ou um simples “tudo bem”, mas não. Ele recebeu um desabafo, palavras tristes, ou talvez apenas perdidas.

“Bom, mas você sabe, às vezes a vida lhe da limões para que você possa fazer uma limo…”

“Não!”, interrompeu bruscamente o companheiro, “A vida me deu ‘nada’ e é com isso que com que eu tenho que lidar.”

Colocando a cabeça inclinada de lado e já se arrependendo de ter feito a maldita pergunta, o outro disse não ter entendido bem o que estava querendo ser dito ali:

“Como? O que você está querendo dizer com isso tudo?”

Este recebeu a sua resposta depois de uma pequena risada.

” É simples , a vida em geral, parece ser um composto de calçadas formadas por tijolos brancos, a calçada de cada um parece Continuar lendo